18 dezembro, 2013

Sonata do Outono, Ingmar Bergman

"Às vezes, fico daqui olhando para a minha mulher, sem que ela se aperceba da minha presença. Ela adora ficar sentada perto da janela do canto. Acho que está escrevendo agora uma cara para a mãe. Da primeira vez que entrou nesta sala, disse: "Esta tudo bem, é aqui mesmo que eu quero ficar". Nos tínhamos conhecido dias antes. Houve uma conferência de bispos em Trondheim a que ela assistiu como representante de uma folha eclesiástica qualquer. Nos encontramos durante um almoço e contei-lhe a respeito daqui, da residência do pastor e seus jardins. Ficou tão interessada, tão interessada, que resolvi lhe propor uma visita pela manhã. Viajaríamos logo que a conferência terminasse. No caminho, perguntei-lhe se queria casar comigo. Não respondeu, mas quando entramos nesta sala virou-se para mim e disse: - Está tudo bme, é aqui mesmo que eu quero ficar! Desde então levamos uma vida tranquila aqui neste lugar. Eva, naturalmente, já me contou seu passado. Fez o vestibular e entrou para a universidade, ficou noiva de um médico e viveu com ele durante vários anos, escreveu dois pequeno livros, ficou tuberculosa, rompeu o noivado e mudou-se de Oslo para uma pequena cidade no sul da Noruega, onde começou a trabalhar como jornalista. Este aqui é o seu primeiro livro, gosto muito dele. Escreveu aqui: "Todos precisam aprender a viver. A cada dia, me esforço um pouquinho. A dificuldade principal está em saber quem eu sou e onde estou. É como procurar na escuridão. Se alguém me amasse como sou, talvez, finalmente, me pudesse encontrar". Se ao menos uma vez, uma única vez, eu conseguisse dizer a ela que a amo de todo o coração, fazê-la sentir como é amada, sem restrições de qualquer espécie. Mas eu não consigo dizê-lo, nem fazê-la acreditar, - me faltam as palavras certas."

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 "Por que razão estou me sentindo como se estivesse com febre? Por que razão sinto vontade de chorar? Idiotice, idiotice pura. Sentir vergolha. É isso. É ter a consciência pesada. Sempre, sempre a consciência pesada. Tanta pressa pra chegar aqui. Que é que eu pretendia afinal? Que é que eu desejava, assim, desesperadamente, ainda que não ousasse reconhecêl-lo perante mim mesma?" "Mas dói. Dor. Dor. Espera. Dói, sim, dói como no segundo andamento da sonata de Bartok. É isso, claro. Acelerei demais o compasso, evidente. O certo é começar tan-tan e depois vem uma pequena onda de dores, sofrimentos. Lento, lento, mas sem lágrimas, porque não há mais lágrimas ou elas nunca existiram. Assim, isso mesmo. E se na prática der certo, então a visita aqui ao lugar não terá sido totalmente em vão."

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 "Venho aqui visitar o cemitério todos os sábados. Se o tempo está ameno como hoje, fico sentada um pouco neste banco junto da campa e deixo os pensamentos correr à vontade. Erik morreu afogado um dia antes de completar quatro anos. [...] Viktor sofreu muito. Havia qualquer coisa de especial entre Erik e o pai. Botei luto durante um bom bocado de tempo, mas de uma maneira superficial. Por dentro, bem no fundo da minha alma, eu sabia desde o início que ele continuaria a viver, que continuaríamos a viver os dois, bem chegados um ao outro. Preciso apenas me concentrar um pouco, um pouquinho só, e lá está ele perto de mim. Às vezes, justamente quando estou para adormecer posso sentir sua respiração contra o meu rosto. Depois, um afago de sua mão. Você acha que é uma excentricidade? Talvez eu possa entender se acaso pensa assim. Para mim é uma coisa completamente natural. Ele está vivendo uma vida diferente, mas a qualquer hora podemos entrar em contato um com o outro. Não há fronteiras. Nenhum muro intransponível. Às vezes, evidentemente, começo a pensar como é a realidade no mundo em que o meu menino vive e respira. Mas ao mesmo tempo compreendo muito bem que não dá para descrever essa realidade, visto que é um mundo de sentimentos liberados. Viktor sofre muito mais do que eu. Diz que não acredita mais em Deus já que Deus deixa as crianças morrer, deixa que elas se queimem e ardam até a morte, que fiquem doidas, que sejam baleadas ou morram de fome. Tento explicar-lhe que não existe diferença entre crianças e adultos, já que os adultos são crianças obrigadas a viver fantasias de adultos. Pra mim, o ser humano é uma criação indescritível, tal qual um pensamento imcrompreensível. E no ser humano existe tudo, do mais alto ao mais baixo, precisamente como na vida. O ser humano é a imagem de Deus e em Deus tudo existe, tudo, como se fossem forças enormes. E assim criaram os diabos e os santos, os profetas e os feiticeiros, os artistas e os destruidores. Tudo existe, lado a lado, penetrando-se mutuamente. É como se fossem monstros gigantescos que a toda hora se transformam, entende o que quero dizeR? Da mesma maneira deve existir também uma quantidade ilimitada de realidade. Não apenas aquela realidade que entendemos com os nossos sentidos obtusos, mas sim um montão de realidades girando à volta umas das outras, por dentro e por fora. Claro que é apenas o medo e o pretensioso bom-senso que nos fazem acreditar em fronteiras. Não existem fronteiras. Não existem, nem para os pensamentos, nem para os sentimentos. É a angústia que fixa as fronteiras, você também não acha? Quando você toca os compassos lentos da sonata de Beethoven para hammarklaver também deve sentir como se estivesse girando num mundo sem fornteiras, dentro de um movimento gigantesco que você mesma jamais poderá reconhecer ou pesquisar. É tal e qual como Jesus. Ele rompeu as leis e as fronteiras com o sopro de um sentimento novo, um sentimento do qual ninguém ainda tinha ouvido falar, o sentimento do amor. É evidente que as pessoas ficam quase sempre aterrorizadas e tentam fugir quando uum grande sentimento as subjuga. Isto, apesar de passarem o tempo todo se arruinando com saudades de seus sentimentos ressequidos e mortos." 

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 "Charlotte
Acho que ela na realidade é tremendamente infeliz. E que, de repente, um dia, é capaz de reconhecer a crueza da verdade e fazer uma loucura qualquer. [...]

Viktor
Então, por favor, senta aqui um momento, queria Charlotte, e escuta. Vou tentar te explicar o que é que penso da minha mulher.

 Charlotte
 Muito bem, estou escutando.

Viktor
Quando pedi a Eva para casar-se comigo, sua resposta imediata foi a de que não me amava. Perguntei se ela amava outro. Me respondeu dizendo que jamais tinha amado qualquer pessoa, que se sentia incapaz de amaar. Eva e eu vivemos aqui durante vários anos, sempre muitos atenciosos um com o outro. Trabalhávamos muito, íamos ao exterior passar minhas férias, até que nasceu Erik. Já tínhamos perdido as esperanças de ter um filho nosso e falávamos até um bocado a respeito de adoção... Enfim, com a gravidez, Eva passou por uma total transformação. Ficou alegre, terna e extrovertida. Ficou também preguiçosa, esquecia seus trabalhos na paróquia e o piano. Podia ficar sentada horas seguidas naquela cadeira, com as pernas para o alto em cima da outra cadeira, olhando a trajetória da luz do sol nas montanhas e no fiorde. De repente, nos sentimos muito felizes... Desculpe por dizer isso, mas a verdade é que nos sentimos muito felizes na cama. Sou vinte anos mais velho do que Eva e achei que isso, realmente, estava começando a plantar-se como um pesadelo sobre o nosso convívio, compreende?... Eu achava que ela podia um dia olhar em volta e dizer assim: afinal, que espécie de vida é esta, é assim que tem que ser? Mas depois tudo se transformou, ficou tudo diferente. Foram alguns... Foi formidável, algumas... Charlotte, você vai me desculpar, mas continua a ser um pouco difícil dizer... Bem, foram alguns anos de muita felicidade. Você devia ter visto Eva naquela época. Não devia ter perdido a ocasião, não.

Charlotte
Recordo, sim, aqueles anos antes e depois do nascimento de Erik. [...] Não tinha um único dia livre.

Viktor
Não, isso mesmo. Insistimos várias vezes para você vir aqui, mas lamentavelmente você nunca tinha tempo disponível. Quando Erik morreu afogado, o clima de pesadelo começou a pesar ainda mais sobre o nosso convívio. Para Eva, enfim, a situação era especial.

Charlotte
Especial? Como assim especial?

Viktor
Os seus sentimentos vivem corroídos por dentro, pelo menos é o que parece. Ficou mias magra, mais ossuda, e também desequilibrada quanto ao humor... Pode ter, por exemplo, enormes explosões de raiva. Mas não acho que esteja sendo excêntrica ou tenha um comportamento estranho. E se ela sente que seu filho vive junto dela, talvez assim seja. Ela não fala muito disso. Receia me ferir... Mas aquilo que diz parece verdade. Acredito nela. Aquela pequena fé que tenho sobrevive só porque ela quer.

Charlotte
Desculpe se o melindrei.

Viktor
Não faz mal, Charlotte. Ao contrário de você e de Eva, eu sou uma pessoa difusa e einsegura. A culpa é toda minha.

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Charlotte
Nao acha que esta noite eu devo tomar um bom par de pílulas para dormir? É, acho que sim. Aqui é tão calmo, silencioso, apenas a chuva batendo leve contra o telhado. Dois mogadon e dois valium devem ser suficientes.

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Charlotte
Você gosta de mim, não gosta?

Eva
É evidente que sim. Você é minha mãe.

Charlotte
Essa não foi uma resposta direta.

Eva
Então, vou responder com uma outra pergunta: você gosta de mim?

Charlotte
Eu te amo.

Eva
Não é verdade. (sorri)

Charlotte
Você me acusa por falta de amor. Mas você não vê o que há de inconcebível numa acusação dessas?

Eva
Não foi acusação nenhuma.

Charlotte
Você se acusa a você mesma por falta de amor em relação a Viktor?

Eva
Eu disse a viktor que não o amava. Você finge que ama. Essa é a diferença.

Charlotte
E se eu o fizesse de boa fé?

Eva
Agora, não entendo o que quer dizer.

Charlotte
E se eu estivesse realmente convencida de que amei, a você e à Helena?

[...]

Eva
De qualquer maneira fui eu, fui eu que, quando as noites chegavam, tinha que fazer companhia a papai, dar-lhe algum consolo, e me sentia obrigada o tempo todo a repetir pra ele que você certamente e apesar de tudo ainda o amava, que você, com certeza absoluta ainda voltaria para casa, fui eu que li suas cartas pra ele. As suas cartas... Longas, carinhosas, cheias de amor, divertidas e até bem humoradas. Cartas, onde contava a respeito das suas interessantes viagens, dos pedaços felizes. Nós ficávamos ali sentados, feito dois imponentes idiotas, lendo suas cartas duas, três vezes, e achando que não podia existir pessoa mais maravilhosa do que você.

Charlotte
Eva, você me odeia?!

Eva
Não sei. Estou meio desorientada. Só sabia, isso sim, que, depois de sete anos de ausência, você ia chegar e me alegrei, fiquei satisfeita, com essa vinda. Não sei que idéias eu tinha. Talvez achasse que você devia sentir-se só e triste. Não sei. Achava talvez que já era adulta, que podia olhar de frente pra você, pra mim mesma, pra doença de Helena, e pra minha infância. Agora entnedo que só existe o caos, um grande caos. Boa noite, mamãe. Não faz sentido nenhum continuarmos falando do passado. Só pode nos massacrar ainda mais. É um absurdo.

Charlotte
Você joga um montão de acusações e depois vai embora! É assim?

Eva
De qualquer maneira já é tarde demais.

Charlotte
Tarde demias para quê?

Eva
Nada poderá ser modificado.

(Através do silêncio, de repente, escuta-se um som abafado, queixoso, quase desumano. Charlotte olha aterrorizada para sua filha. Eva diz: "É helena, acordou, vou lá acima num instante ver se ela precisa alguma coisa". Sobe no escuro, conhece o caminho, não precisa acender a luz. Lá fora a lua continua brilhando intensamente. Está tudo tranquilo, imóvel, nem um sopro de vento, nem o vôo de um pássaro. Eva abre devagar a porta do quarto de Helena. O som de queixume pára quase que imediatamente. Acende a lâmpada da mesinha de cabeceira. Helena está sentada na cama, encostada nos travesseiros grande e presa com um cinto. As convulsões agitam seu pescoço e seus ombros. Morde os lábios. Os olhos estão bem fechados. Dorme. Eva tenta acordá-la, com cuidado, lentamente, seus olhos se abrem; lentamente, ela reconhece a realidade. Tenta dizer alguma coisa, mas desiste imediatamente. Eva pergunta-lhe se está com sede. Responde que não, agradece, fecha os olhos e adormece rapidamente. As convulsões não voltam, seu rosto parece tranquilo. Eva ainda fica sentada, perto dela, durante um tempo. Apaga a luz. Dá mais uma olhada.)"

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