13 novembro, 2014

Essas baboseiras de sempre

1) Mas é que vez ou outra dá uma dor tão forte aqui por dentro, bem no meio do corpo, como se fosse o ponto central de todas as angústias que carrego comigo. É como se elas sempre estivessem ali, escondidinhas e em posição fetal, aí nessas horas elas decidem se desdobrar e esticar e dominar tudo que existe por dentro de mim. Bate um cansaço, uma desvontade de tudo ao redor e aquele sentimento já tão conhecido de que nada é válido. Aí me lembro daquele tempo que essa dor ainda era desconhecida, do tempo em que era inexistente para mim essa necessidade de ser só, porque eu sabia que não estava só, porque sempre que a solidão chegava, eu podia dar um jeito de modificar minha rotina e passar na tua casa, te dar um cheiro, receber seu carinho e mesmo sem que você soubesse, mesmo que eu nunca tenha te dito, era o carinho mais lindo de toda a vida e era recíproco. Hoje, quatro anos e mais um bocado de dias na conta do tempo que já passou, me vejo tão distinto de quando eu te tinha por perto. Não só me acostumei com o estar só, mas também me obriguei a estar só, me ensinei que estou só e afastei todos que tentaram não me deixar só por saber que uma hora me deixariam só. Não, eu sei que você não deve gostar dessa minha posição perante a vida, mas tenta entender, é o meu jeito de me manter forte, foi o único jeito que encontrei no meio de todo aquele inferno astral. Saudade é forte, a lágrima é constante (interna ou externa), o amor me restou apenas o próprio e de você só o quadro na parede mesmo.


2)E aí que as mãos de Josué começaram a tremer, ele repetiu mentalmente oito vezes que era só mais uma tremedeira, dessas que ele vez ou outra tem. E aí ele não conseguiu repetir a nona vez pois sua mente já estava fora de controle e pensando tantos absurdos – ele olhou pra mim, eu vi - e tantas loucuras – e se eu cruzar a perna, será que deixo de aparentar ser tão frágil? - ao ponto dele não conseguir se concentrar em apenas uma. E aí que ele percebeu que não era mais só sua mão que estava tremendo, mas também suas pernas e até mesmo o rosto – vou fingir que estou bocegando - e para que ninguém percebesse, ele fingiu estar com TOC – será que tô mexendo rápido o suficiente? Será que alguém vai perceber que estou forçando isso? - na perna, algo tão comum entre as pessoas nos dias de hoje. E aí que ele não se sentia mais capaz de olhar para um ponto fixo e na fé que conseguiria fazer com que ninguém notasse, pegou a sua mochila e fingiu estar procurando algo bem lá no fundo e que por isso ele tava demorando tanto naquela procura – mas sem fazer muito barulho para não chamar atenção daqueles que ainda não o tinham notado. E aí que Josué, no meio do rebuliço dentro da mochila, se tocou que não estava mais conseguindo prestar atenção em o que lhe era dito; ele escutava perfeitamente, mas as palavras passavam por ele como se não tivessem importância alguma, só que ele queria dar valor para aquelas palavras, ele se esforçava para assimilar e guardar aquilo que estava sendo dito pra ele e ele tenta com bem muita vontade e até que consegue segurar uma oração completa, mas aí ao repetir dentro da cabeça aquela frase – Consegui! Calma, calma, tá vendo que já passou? Essa foi fácil - ele já se perde na que veio a seguir e no desespero de não saber o que colocar depois daquela primeira, esquece tudo de novo – Estúpido, estúpido, estúpido. E aí alguém por perto dá pra Josué um papel e ele sabe que naquela folha é para colher assinaturas, mas ele tem medo que esteja tremendo tanto ao ponto de não conseguir segurar com firmeza a caneta e ao pensar isso, ele lembra-se que não levou a caneta e vai ter que pedir para alguém, olha para os lados, não sabe para quem pedir, não quer pedir, não quer que o vejam naquela situação, não quer que olhem para ele em nenhuma situação, quer sumir. E aí ele na loucura de considerar que está passando do limite de tempo aceitável para ficar com o papel e com o costumeiro receio de que alguém lhe dirija a palavra, prefere pedir uma caneta, falou tão baixo e rápido que pôde ter a certeza que não entenderam, mas por verem que ele estava com o papel, deduziram que era para dar uma caneta. Josué pegou a caneta e abaixou a cabeça imediatamente, tentando conduzir toda concentração possível para o papel, mas na sua cabeça, no meio dos tantos e tantos pensamentos, passa rápidamente o que estão todos olhando pra ele enquanto ele está com a cabeça baixa, assina o mais depressa que pode o nome – nossa, que letra horrível, com certeza a próxima pessoa vai notar isso – e repassa o papel, ergue a cabeça e – nossa, eles são muito rápidos – ninguém olhando pra ele. E aí Josué pensa em ir embora, mas antes precisa pensar qual o melhor caminho até a porta de saída, por onde vai esbarrar em menos gente e será menos notado – e se alguém me chamar quando eu levantar? -, direita, três passos não muito largos, esquerda, dá a volta por aquela idiota que tá de perna cruzada bloqueando o caminho e depois é só mais uns passinhos e estou na porta – por favor, que não me notem, por favor, por favor -. E aí Josué se levanta e consegue fazer todo o trajeto, finalmente: livre. Só que aí a tremedeira continuou e em vez dos pensamentos descontrolados, Josué sente o descontrole emocional. Decide que aquela é a última vez que se submete à algo assim, passa rapidamente no banheiro para lavar o rosto, se olha no espelho – estúpido, estúpido, estúpido – e nota que ainda não se livrou completamente dos tremores, sai do banheiro por não aguentar se encarar naquela situação e vai embora. Estúpido, estúpido, estúpido.

3)

18 setembro, 2014

Trechos de Antes de Nascer o Mundo

"Toda a história do mundo não é mais
que um livro de imagens reflectindo
o mais violento e mais cego
dos desejos humanos: o desejo de esquecer.

Hermann Hesse, Viagem pelo Oriente"

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"A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
- Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar clado.
Ao fim do dia, o velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:
- Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.
Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum antepassado. Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma, quem podia ter a certeza? De tão calada, ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.
- Você sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego dessa varanda é diferente."

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"A razão desse favoritismo sucedera num único instante: no funeral da nossa mãe, Silvestre não sabia estrear a viuvez e se afastou para um recanto para se derramar em pranto. Foi então que me acerquei de meu pai e ele se ajoelhou para enfrentar a pequenez dos meus três anos. Ergui os braços e, em vez de lhe limpar o rosto, coloquei as minhas pequenas mãos sobre os seus ouvidos. Como se quisesse convertê-lo em ilha e o alonjasse de tudo que tivesse voz. Silvestre fechou os olhos nesse recinto sem eco: e viu que Dordalma não tinha morrido. O braço, cego, estendeu-se na penumbra:
- Alminha!
E nunca mais ele proferiu o nome dela. Nem evocou lembrança do tempo em que tinha sido marido. Queria tudo isso calado, sepultado no esquecimento."

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"Olhou o fogo, fez de conta que se mirava num espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos vapores da cafeteira. Ainda de olhos fechados, sussurrou:
- Vou dizer um pecado: deixei de rezar quando você nasceu.
- Não diga isso, meu pai.
- Estou-lhe a dizer.
Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobrem às alturas.
- Mas Deus está surdo - disse.
Fez uma pausa para erguer  a chávena e saborear o café e, depois, rematou:
- Mesmo que não estivesse surdo: que palavra há para falar a Deus?
Em Jesusalém, não havia igreja de pedra ou cruz. Era no meu silêncio que meu pai fazia catedral. Era ali que ele aguardava o regresso de Deus."

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"Terminara o universo sem espectáculo, sem rasgão nem clarão. Por definhamento, exaurido em desespero. E assim, vagamente, meu pai derivava sobre a extinção dos cosmos. Primeiro, começaram a morrer os lugares-fêmeas: as nascentes, as praias, as lagoas. Depois, morreram os lugares-machos: os povoados, os caminhos, os portos.
- Sobreviveu apenas este lugar. É aqui que vivemos de vez.
Viver? Ora, viver é cumprir sonhos, esperar notícias. Silvestre não sonhava, nem aguardava notícia. No princípio, ele queria um lugar onde ninguém se lembrasse do seu nome. Agora, ele próprio já não se lembrava quem era."

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"Velhice não é idade: é um cansaço. Quando ficamos velhos, todas as pessoas parecem iguais. Essa era a lamentação de SIlvestre Vitalício. Os habitantes e os lugares já eram todos indistintos quando ele se decidiu pela viagem total. Outras vezes - e foram tantas vezes - Silvestre teria declarado: a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado.
- Vosso pai está muito psicológico - concluía o Tio. - Isso passa-lhe, mais dia."

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