18 setembro, 2014

Trechos de Antes de Nascer o Mundo

"Toda a história do mundo não é mais
que um livro de imagens reflectindo
o mais violento e mais cego
dos desejos humanos: o desejo de esquecer.

Hermann Hesse, Viagem pelo Oriente"

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"A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
- Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar clado.
Ao fim do dia, o velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:
- Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.
Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum antepassado. Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma, quem podia ter a certeza? De tão calada, ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.
- Você sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego dessa varanda é diferente."

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"A razão desse favoritismo sucedera num único instante: no funeral da nossa mãe, Silvestre não sabia estrear a viuvez e se afastou para um recanto para se derramar em pranto. Foi então que me acerquei de meu pai e ele se ajoelhou para enfrentar a pequenez dos meus três anos. Ergui os braços e, em vez de lhe limpar o rosto, coloquei as minhas pequenas mãos sobre os seus ouvidos. Como se quisesse convertê-lo em ilha e o alonjasse de tudo que tivesse voz. Silvestre fechou os olhos nesse recinto sem eco: e viu que Dordalma não tinha morrido. O braço, cego, estendeu-se na penumbra:
- Alminha!
E nunca mais ele proferiu o nome dela. Nem evocou lembrança do tempo em que tinha sido marido. Queria tudo isso calado, sepultado no esquecimento."

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"Olhou o fogo, fez de conta que se mirava num espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos vapores da cafeteira. Ainda de olhos fechados, sussurrou:
- Vou dizer um pecado: deixei de rezar quando você nasceu.
- Não diga isso, meu pai.
- Estou-lhe a dizer.
Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobrem às alturas.
- Mas Deus está surdo - disse.
Fez uma pausa para erguer  a chávena e saborear o café e, depois, rematou:
- Mesmo que não estivesse surdo: que palavra há para falar a Deus?
Em Jesusalém, não havia igreja de pedra ou cruz. Era no meu silêncio que meu pai fazia catedral. Era ali que ele aguardava o regresso de Deus."

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"Terminara o universo sem espectáculo, sem rasgão nem clarão. Por definhamento, exaurido em desespero. E assim, vagamente, meu pai derivava sobre a extinção dos cosmos. Primeiro, começaram a morrer os lugares-fêmeas: as nascentes, as praias, as lagoas. Depois, morreram os lugares-machos: os povoados, os caminhos, os portos.
- Sobreviveu apenas este lugar. É aqui que vivemos de vez.
Viver? Ora, viver é cumprir sonhos, esperar notícias. Silvestre não sonhava, nem aguardava notícia. No princípio, ele queria um lugar onde ninguém se lembrasse do seu nome. Agora, ele próprio já não se lembrava quem era."

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"Velhice não é idade: é um cansaço. Quando ficamos velhos, todas as pessoas parecem iguais. Essa era a lamentação de SIlvestre Vitalício. Os habitantes e os lugares já eram todos indistintos quando ele se decidiu pela viagem total. Outras vezes - e foram tantas vezes - Silvestre teria declarado: a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado.
- Vosso pai está muito psicológico - concluía o Tio. - Isso passa-lhe, mais dia."

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